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O desafio de avaliar as reações adversas aos medicamentos

 
Por, Dr. Maurício Wesley Perroud Junior
 
Inicialmente, vamos discutir alguns aspectos desafiadores do tema, fugindo da tentação de apresentar classificações usuais, já que elas são bem conhecidas ou facilmente disponíveis pela maioria dos profissionais da Farmacovigilância, mas tem um alcance limitado.
 
Um primeiro cuidado é entender que o significado dos eventos adversos e, portanto, dos riscos de uma tecnologia em saúde, sofrem variações condizentes com cada um dos  papeis dos  diversos fatores envolvidos, tais como os profissionais da saúde, os dirigentes e proprietários das indústrias farmacêuticas, os agentes da regulamentação, além dos pacientes.
 
Nos guias para avaliação de risco da Conferência Internacional de Harmonização Consta que risco geralmente é definido pela probabilidade da ocorrência de um dano em confronto com a sua gravidade. “It is commonly understood that risk is defined as the combination of the probability of occurrence of harm and the severity of that harm.” (1)
Resumindo, risco designa a chance de algo dar errado. Muitas vezes o risco é confundido com o perigo. Perigo é uma qualidade intrínseca. Por exemplo, a gasolina é perigosa porque é inflamável pela sua própria natureza. Mas o risco (chance) de que ocorra a combustão incontrolada depende de diversos fatores como temperatura, presença de uma fagulha, forma de armazenamento, saturação de vapores, etc.
 
Risco é sempre uma surpresa?
Riscos por eventos adversos podem ser conhecidos ou presumíveis a partir das seguintes fontes principais: dados pré-clínicos, dados obtidos nos estudos clínicos e aqueles referentes à classe farmacológica. Mas existe sempre algum risco envolvendo eventos adversos desconhecidos ou mesmo inimagináveis.
Os ensaios clínicos são a grande origem das avaliações de segurança, mas temos que enfrentar suas limitações (2):
 
-              Ausência de um padrão ouro para detecção de sinais;
-              As conclusões, e portanto, as decisões,  dependem de fórmulas estatísticas cujo poder  é limitado;
-              Falhas são comuns na avaliação e classificação dos eventos adversos dos ensaios clínicos já que o seu foco é quase sempre a avaliação da eficácia ou eficiência, com frequência, de forma comparativa.
-              População da pesquisa é sempre controlada, às vezes bem longe da população usuária real e final do medicamento ou outra tecnologia;
-              Foco na detecção de benefício (raramente o evento adverso é desfecho primário).
Principais processos estatísticos na pesquisa clínica
Entrando em detalhes quanto às fórmulas estatísticas, os processos modernos e úteis são  os seguintes (3)
 
a. Número necessário para tratar (NNT) e número necessário para causar dano (NNH).
Quando se combinam estes dois métodos relativamente simples, podemos avaliar a relação benefício/risco em um único ensaio clínico. Se NNH:NNT for maior que 1, menos pacientes precisam ser tratados para observar um benefício do medicamento do que para ter uma ocorrência adicional de uma reação adversa; em outras palavras, a avaliação do risco é positiva.
 
b. Tempo ajustado pela qualidade sem sintomas e toxicidade
O tempo perdido devido a uma reação adversa é subtraído do tempo ganho com o tratamento. Também se usa a contagem dos anos de vida ajustados pela qualidade (QALYs), uma medida tanto da qualidade quanto da quantidade de vida.  Esta abordagem permite a comparação direta do ganho (benefício) com a perda (risco) em uma única métrica.
Para um paciente individual, esta estimativa pode ser válida, mas para uma população de pacientes a atribuição do valor de um ano de vida ganho ou perdido é mais difícil.
 
c.  Análise de decisão multicritério
Esta análise é uma ferramenta de apoio à tomada de decisão na qual vários benefícios e riscos podem ser levados em consideração (negócio e administração). Podem ser considerados vários riscos. Serão medidos por reações adversas, interrupções de tratamento, interações drogas/drogas ou droga/doença. O modelo pode ser bastante complexo e estatisticamente complicado. Além disso, os pesos atribuídos aos itens podem trazer viés de subjetividade.
 
d. Posição delicada da agência reguladora
A posição das autoridades regulatórias sobre a avaliação dos riscos e benefícios é instrutiva, pois têm o duplo objetivo de estimular o progresso terapêutico farmacêutico, ao mesmo tempo em que protegem a saúde pública.
 
Relevância da medicina translacional
Voltando ao tema central da avaliação dos riscos, vale lembrar a importância da  medicina chamada “translacional”, tanto na sua forma  comum, direta e prospectiva como a forma reversa. Na forma direta, por exemplo, podemos considerar dados farmacocinéticos e acompanhar sua aplicação e importância na prática terapêutica. No formato reverso, com base no uso já ocorrido, apreciamos os detalhes deste emprego (4).
Em que se baseia hoje a farmacovigilância?
Relatos espontâneos continuam sendo a principal fonte de informações pós-comercialização (52%). Mas, pela sua natureza, têm uma série de limitações (5).
 
-              Estudos clínicos (16%)
-              Estudo sobre farmacocinética (11%)
-              Relato de caso (6%)
-              Estudos farmacoepidemiológicos observacionais (6%)
 
Para melhorar a avaliação dos riscos
SE tivéssemos grandes redes de bancos de dados populacionais, seria possível executar a ”mineração” de dados e promover a integração de diversas fontes de informação para melhor prever e identificar eventos adversos a medicamentos. Mas isto somente vai ser possível com grande apoio oficial. É um enorme desafio formar tais redes. Não existe um ponto de partida uniforme. O SUS, que atende mais de 70% da população, não padronizou registros hospitalares. Cada serviço gerencia seus dados, alguns usam os processos do SUS, outros compraram programas e outros nem informatizaram os registros dos pacientes.
Uma classificação mais operacional dos riscos os divide em conhecidos e desconhecidos.
Pode-se comparar a busca de dados de segurança dos medicamentos com a preocupação com a segurança dos pacientes. É vital estarmos preparados para os imprevistos.
O objeto da preocupação deve ser bem estudado, mas é indispensável considerar o contexto, o que realmente ocorre hoje na área da saúde.
NB: lista de artigos que a profundam o estudo do tema pode ser obtida no QR code anexo.
 
 
Referências bibliográficas de interesse
https://docs.google.com/document/d/1VOEeXLQaqEgsClEUj6wYzwUtxZqfQWp-lUyMoPFwPKY/edit?usp=sharing
 

[Gráfico de dispersão, Código QR Descrição gerada automaticamente]
 
Anexo ao artigo
Conceito de Medicina translacional
 
O conceito de Medicina Translacional abrange três aspectos:
a) aceleração de transmissão de conhecimentos de pesquisa básica à aplicação clínica;
b) aprofundamento de observações clínicas, em busca de melhor entendimento fisiopatológico pela interação com ciência básica;
c) aplicação à população geral de conhecimentos básicos e conceitos oriundos de pesquisas clínicas.
 
Assim, no geral, a medicina translacional procura acelerar a transmissão de conhecimento gerado em pesquisa, transformando tais conhecimentos em instrumentos práticos de investigações no campo do diagnóstico ou do tratamento. Para tanto, é preciso ter estruturas técnicas e administrativas que incluem pesquisadores, instalações, orçamento e a cultura de integração entre as diferentes equipes de trabalho. Pela complexidade desse conjunto, apenas instituições de excelência podem ter sucesso em tais programas. O Brasil já conta com algumas instituições de prestação de serviços médicos e pesquisa que atendem esses requisitos.
 
Crucial ao desenvolvimento de programas translacionais, as universidades devem atender dentro do princípio de meritocracia. Neste ponto, universidades brasileiras precisam de transformações profundas. Por fim, a medicina translacional, ao visar o progresso científico e a melhoria da saúde populacional, também contribui para diminuir as desigualdades sociais, entre essas, a saúde da população está em destaque.
Luz, Protásio L. Medicina Translacional - nova fronteira. Revista da SOCESP. 2018. 28(1):14-9.
 
Disponível em:
https://socesp.org.br/revista/assets/upload/revista/13404699881526310160pdfptMEDICINA%20TRANSLACIONAL%20-%20NOVA%20FRONTEIRA_REVISTA%20SOCESP%20V28%20N1.pdf
 
Medicina translacional – resumo de artigo
Luz, Protásio Lemos. Medicina Translacional - Nova Fronteira.  Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 2018;28(1):14-9 15.
 
Resumo da palestra : Como avaliar e classificar riscos no uso de medicamentos apresentada no  evento online “Mitigação dos riscos e outros desafios em farmacovigilância”,  realizado pela Unifar em 18 de agosto de 2021. A palestra foi proferida pelo Dr. Maurício Wesley Perroud Junior. Professor da Disciplina de Pneumologia da FCM/Unicamp e superintendente do Hospital Estadual Sumaré/Unicamp,
 
Referências:
 
1) ICH HARMONISED TRIPARTITE GUIDELINE. QUALITY RISK MANAGEMENT - Q9
 
2) Singh S.  Loke YK. Drug safety assessment in clinical trials: methodological challenges and opportunities. Trials 2012,13:138. Disponível em http://www.trialsjournal.com/content/13/1/138
 
3) Curtin F, Schulz P. Assessing the benefit: risk ratio of a drug--randomized and naturalistic evidence. Dialogues Clin Neurosci. 2011;13(2):183-90. doi: 10.31887/DCNS.2011.13.2/fcurtin. PMID: 21842615; PMCID: PMC3181998.
 
4) Kasichayanula S, Venkatakrishnan K. Reverse Translation: The Art of Cyclical Learning. Clin Pharmacol Ther. 2018 Feb;103(2):152-159. doi: 10.1002/cpt.952. PMID: 29313963.
 
5) Curtin F, Schulz P. Assessing the benefit: risk ratio of a drug--randomized and naturalistic evidence. Dialogues Clin Neurosci. 2011;13(2):183-90. doi: 10.31887/DCNS.2011.13.2/fcurtin. PMID: 21842615; PMCID: PMC3181998.